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14.04.2015

Cannabis: Da fitoterapia para a medicina

A medicina atual, cada vez mais se posiciona como conhecimento exclusivamente tecnológico. Entretanto a maior parte da massa de informações que ciência médica produz, deriva direta ou indiretamente de informações vindas de moléculas da natureza, e das interações químicas e biológicas entre as formas de vida que estão na biosfera.

Nesse contexto, a cultura, que guarda uma observação milenar da interação entre o homem e outras formas de vida, é um baú de informações de valor inestimável. Rever a história da Cannabis até os dias hoje, nos permite fazer uma visão crítica desse processo. Nessa história duas lições são indiscutíveis: 1 – o respeito, e a importância e que devemos aprender a nutrir pelo saber da medicina tradicional; 2 – como interesses econômicos e corporativos, exercidos de forma antiética e perversa, podem prejudicar a ciência e a sociedade.

Posso começar minha história, por ocasião do lançamento do meu primeiro livro, chamado Fitoterapia Chinesa e Plantas Brasileiras, em 1996, e editado pela Editora Ícone. Era um grosso tratado, de capa dura, onde as plantas medicinais usadas na medicina chinesa são comparadas às empregadas na medicina tradicional no Brasil. Nessa intercessão, uma das espécies citadas no livro, era a Cannabis sativa. Durante a divulgação do livro, foi essa informação, a que mais chamou a atenção da imprensa, rendendo até uma entrevista no Programa do Jô, quando ainda era no SBT.

“Você prescreve maconha para seus pacientes?” Desafiava o entrevistador. E eu tentando explicar que a inclusão dessa planta no livro, era apenas uma posição favorável ao uso medicinal, e não a incitação à infração da lei. Lei essa absolutamente burra e equivocada, mas como isso não podia ser dito, só me restava apanhar da imprensa, como um boxeador encurralado no corner. Ainda assim, nessa época, e nos anos seguintes, o meu objetivo continuava claro: era preciso gerar informações fidedignas e de qualidade, manifestando o desacordo com a postura preconceituosa, ou isso nunca iria mudar.

E quando olhamos as informações sem as lentes tortas e esfumaçadas do preconceito, nos deparamos com dados que consistentemente reforçam os argumentos do uso medicinal. Ao longo de muitos séculos a Cannabis foi usada no tratamento de muitas doenças, incluindo epilepsia, depressão, ansiedade, insônia, dores em geral, problemas digestivos e asma. Cannabis foi cultivada e usada como medicamento e fonte de fibras vegetais desde o período neolítico, no norte da África e em regiões da Ásia central. Referências ao seu uso são encontradas na Medicina Chinesa, Tibetana, Ayurveda, Persa, Greco-Romana, na cultura Judaica, e entre povos germânicos e celtas, na idade média.

Além do emprego medicinal, seus efeitos no sistema nervoso eram bem conhecidos, e por isso se acreditava que tinha poderes mágicos. Assim, em muitas religiões como no induísmo, no taoísmo, e em rituais africanos ou entre índios das Américas seu uso ritualístico era feito durante festas religiosas. Em 1854 foi incluída no Official Dispensatory of the United States, como medicamento para náuseas e vômitos.

Entretanto a indústria do tabaco viu na Cannabis um risco ao seu negócio. O hábito de fumar a erva, que era adotado por índios e negros nos EUA, era considerado ameaçador e facilitou as campanhas difamatórias feitas pelos plantadores de beneficiadores de tabaco, ajudados pela ala conservadora das igrejas protestantes, levando a proibição do uso e comercialização nos EUA em 1920. Essa campanha difamatória se estendeu mundialmente, havendo pressões políticas para que medidas semelhantes fossem adotadas em outros países. Foi nesse período que a maconha foi apelidada de “erva do diabo”.

Em 1961 ela foi incluída como “droga narcótica com riscos à saúde e causadora de dependência” na Convenção Internacional sobre Drogas Narcóticas da ONU, requerendo uma proibição e criminalização do seu plantio, produção, importação, exportação e comercialização nos estados membros.

Foi uma grande vitória da indústria do tabaco, e uma derrota do bom senso. Em muitos países como o Brasil, nem o uso em pesquisa era tolerado. A gravidade e a contundência das medidas tomadas contra a Cannabis era totalmente desproporcional ao risco que ela exibia como potencial prejuízo à saúde humana. Alcalóides do ópio, com capacidade de causar severa dependência e de gerar efeitos muito mais destrutivos sobre a saúde, foram tolerados para uso médico, o que impedia a maconha de ter tratamento semelhante?

É claro que em locais como os Estados Unidos, e outros países de indústria farmacêutica forte (Japão e Europa), à partir dos anos 70, começou-se a pesquisar sobre os efeitos dos canabinóides, os princípios ativos da Cannabis. Para variar, nesse quesito, também, ficamos para trás, na corrida do conhecimento. Mesmo com inúmeros protestos feitos por nossos neurocientistas, onde destaco a pró-atividade do professor Eliseu Carlini, da Escola Paulista de Medicina, até recentemente, a pesquisa com Cannabis sativa era proibida em território brasileiro.

Já nos centros de pesquisa internacionais, logo se percebeu que havia um grande potencial para uso de canabinóides em muitas doenças. Em 1989, pesquisadores do NIH (Instituto Nacional de Saúde), com colaboração do laboratório Pfizer, mapearam e descreveram o receptor canabinóide, um enorme avanço para as pesquisas. Finalmente sabia-se que o efeito da maconha vinha do estímulo de um local específico nas células nervosas. A busca de novas drogas com atividade nesse receptor, passou a ser um dos focos da indústria farmacêutica.

Entretanto, mesmo com 25 anos de esforços, a indústria farmacêutica não conseguiu sair com nenhuma molécula sintética atuante nos receptores canabinóides, e que pudesse chegar ao mercado. Considerando que o cérebro humano é o órgão que mais difere entre nós, e outras espécies de mamíferos, as drogas sintéticas atuando nesse receptor, sempre causavam efeitos adversos mais severos que os canabinóides naturais, quando introduzidas para os testes clínicos. Por outro lado as pesquisas com os componentes naturais da Cannabis sativa continuaram a progredir, reforçando que ali já existia potencial de uso médico, que deveria ser aproveitado.

A indústria farmacêutica gosta de moléculas sintéticas, pois elas podem ser patenteadas, e com isso geram muito mais retorno financeiro. Mas nesse caso tiveram que se contentar com as naturais mesmo, como se fosse uma punição divina pela difamação que os interesses do capital infringiram à velha Cannabis sativa. Nesse cenário, um dos canabinóides isolados da “Erva do Diabo”, o canabidiol tem surgido como um excelente medicamento modulador da atividade dos neurônos, com potencial de uso em muitas doenças como epilepsia, depressão, ansiedade e esquizofrenia.

Em nosso país, como bons colonizados que somos, a maior parte dos avanços só acontecem depois que o primeiro mundo já incorporou, e já está um passo adiante. Foi necessário pais dispostos a lutar desesperadamente pelos seus filhos, e um drama divulgado em rede nacional pela televisão, para que os burocratas da Agência de Vigilância Sanitária caíssem na real, e permitissem a sua importação para uso médico.

E, pasmem, o uso das moléculas isoladas não tirou a atratividade do uso do fitocomplexo, ou seja dos componentes da planta como um todo. Existem publicações científicas sugerindo benefícios e uso potencial do extrato da planta em inúmeras doenças como: doença inflamatória do intestino, dor neuropática, diabetes, glaucoma, caquexia, câncer, anorexia, doenças autoimunes, e cólon irritável. Esperamos que um dia a nossa sociedade chegue a um estágio de evolução, onde seja permitido aproveitar os benefícios médicos da Cannabis sativa sem preconceito e desinformação.